A Inconstitucionalidade da exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista
1. Introdução
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) nº 511.961/SP em 17 de junho de 2009, declarou a não recepção do art. 4º, inciso V, do Decreto-lei nº 972/1969 pela Constituição Federal de 1988. A decisão abriu um marco no debate sobre a liberdade profissional e de expressão no Brasil, eliminando a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão de jornalista. O presente artigo tem como objetivo analisar os fundamentos constitucionais e jurídicos dessa decisão, bem como suas implicações.
2. O contexto jurídico do caso
O Decreto-lei nº 972/1969, promulgado durante o regime militar, estabelecia, entre outras exigências, a obrigatoriedade do diploma em curso superior de jornalismo como requisito para o exercício da profissão de jornalista. Com a promulgação da Constituição de 1988, que trouxe um amplo catálogo de direitos e garantias fundamentais, surgiram questionamentos sobre a constitucionalidade dessa imposição.
3. O julgamento do STF e os fundamentos Constitucionais
O STF, em sua composição plenária, concluiu que a obrigatoriedade do diploma violava princípios fundamentais previstos nos arts. 5º e 220 da Constituição Federal de 1988, que garantem a liberdade de expressão, de informação e de comunicação. A decisão se baseou, principalmente, nos seguintes dispositivos:
– Art. 5º, IV: Garante a livre manifestação do pensamento.
– Art. 5º, IX: Estabelece a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
– Art. 5º, XIII: Assegura o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais exigidas por lei.
– Art. 220: Garante a liberdade de imprensa e proíbe qualquer restrição ao fluxo de informações e à atividade jornalística.
Com base nesses dispositivos, o STF entendeu que a exigência do diploma e o registro profissional representavam uma barreira indevida ao livre exercício do jornalismo, comprometendo tanto a liberdade de profissão quanto a livre circulação de ideias.
4. A Não recepção do Decreto-lei nº 972/1969
A não recepção é um instituto do Direito Constitucional brasileiro que ocorre quando uma norma jurídica anterior a uma nova Constituição se torna incompatível com os princípios, valores ou normas fundamentais introduzidos por esse novo texto constitucional. Diferente da revogação, a não recepção decorre da análise de conformidade material entre a norma anterior e a nova ordem constitucional.
Quando uma nova Constituição é promulgada, ela estabelece um novo sistema jurídico e, por isso, todas as normas anteriores a ela precisam ser analisadas quanto à sua compatibilidade com o novo ordenamento. A não recepção ocorre quando uma norma anterior, embora formalmente válida, deixa de ser aplicável por ser materialmente incompatível com a nova Constituição. Isso significa que, em vez de a norma ser formalmente revogada por um ato legislativo, ela simplesmente perde a eficácia com a entrada em vigor do novo texto constitucional.
Esse fenômeno ocorre com maior frequência em Constituições que trazem mudanças substanciais nos direitos e garantias fundamentais, como é o caso da Constituição de 1988, que ampliou as liberdades civis e sociais, rompendo com práticas autoritárias do regime militar.
Portanto, a técnica da “não recepção” utilizada pelo STF no julgamento do RE 511.961 significa que uma norma anterior à Constituição de 1988, apesar de formalmente válida à época, é incompatível com o novo ordenamento constitucional e, portanto, perde sua eficácia. Assim, o art. 4º, inciso V, do Decreto-lei nº 972/1969 foi considerado inaplicável.
Diferença entre não recepção e revogação
- Não recepção: A norma deixa de ter eficácia em razão da incompatibilidade material com a nova Constituição.
- Revogação: A norma é expressamente ou tacitamente substituída por uma nova lei infraconstitucional posterior, mas não há conflito direto com a Constituição.
Por exemplo, uma lei que estabelecia um regime de censura prévia à imprensa é considerada não recepcionada pela Constituição de 1988, dado que esta proíbe expressamente a censura no art. 220.
Exemplos de não recepção pela Constituição de 1988
_ Exigência de Diploma para Jornalistas – RE nº 511.961
O STF, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 511.961, entendeu que o art. 4º, inciso V, do Decreto-lei nº 972/1969, que exigia diploma de curso superior para o exercício do jornalismo, não foi recepcionado pela Constituição de 1988. A decisão baseou-se na incompatibilidade com os princípios da liberdade de expressão e do livre exercício profissional previstos nos arts. 5º, IV, IX e XIII, e 220 da Constituição.
_Censura Prévia à Imprensa e Produções Culturais
Leis da época da ditadura militar que permitiam censura de jornais, revistas e produções culturais foram automaticamente não recepcionadas pela Constituição de 1988, dado que esta proíbe qualquer forma de censura prévia à manifestação do pensamento e à atividade artística e cultural (art. 220, § 2º).
_Regime de Prisão por Dívida
A Constituição de 1988 proíbe a prisão por dívida civil, exceto nos casos de inadimplemento de pensão alimentícia (art. 5º, LXVII). Assim, qualquer norma anterior que permitisse prisão por outras dívidas civis foi considerada não recepcionada.
_Julgamento de Civis por Tribunais Militares em Tempos de Paz
A Constituição de 1988 restringiu significativamente a competência da Justiça Militar. Por isso, normas anteriores que permitiam o julgamento de civis por tribunais militares em situações de paz não foram recepcionadas, conforme entendimento posterior consolidado pelo STF.
5. Implicações e críticas à decisão
A decisão gerou reações divergentes. De um lado, defensores da liberdade de expressão celebraram a abertura da profissão de jornalista, entendendo que a comunicação e o jornalismo são atividades que não devem ser restritas a um grupo específico. Por outro lado, críticos apontaram que a medida poderia impactar a qualidade da informação e desvalorizar o papel das formações acadêmicas na área.
Além disso, a ausência de regulamentação específica para a profissão de jornalista gerou debates sobre a necessidade de algum tipo de certificação ou código de ética que garanta a responsabilidade dos profissionais, sem, contudo, violar os princípios constitucionais.
6. Conclusão
A decisão do STF no RE nº 511.961 representa uma vitória para a liberdade de expressão e a pluralidade de ideias, pilares fundamentais da democracia. Ao afastar a obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo, o Tribunal reafirmou que o direito à informação e à comunicação não pode ser restringido por normas burocráticas. No entanto, o debate sobre a qualidade da informação e a ética na profissão continua em aberto, exigindo a construção de novos modelos que conciliem liberdade e responsabilidade na prática jornalística.
7. Referências
– Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
– Decreto-lei nº 972, de 17 de outubro de 1969.
– STF. Recurso Extraordinário nº 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17/06/2009. Disponível em: https://www.stf.jus.br.
José Deivison de Oliveira Coutinho
Advogado, OAB RJ 186.125
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Advogado Previdenciário no Rio de Janeiro-RJ.
Advogado Trabalhista no Rio de Janeiro-RJ
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